Desafios da formação de leitores na escola
A experiência mostra que não basta oferecer mais livros aos alunos. É preciso escolher bons livros literários, garantir a diversidade de gêneros e levar em conta as preferências das crianças e dos adolescentes
A experiência mostra que não basta oferecer mais livros aos alunos, afirma Denise Guilherme, idealizadora do Leitura Em Rede e formadora do programa Ler e Escrever, da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. Neste artigo, ela lembra que é preciso escolher bons livros literários, garantir a diversidade de gêneros e levar em conta as preferências das crianças e dos adolescentes.
1. Formação depende da qualidade das obras e das vivências com a leitura
Nos últimos anos parece haver consenso entre os professores do Ensino Fundamental sobre a necessidade de trabalhar com textos literários nas aulas de Língua Portuguesa. Talvez por isso, muitos educadores tenham dedicado parte significativa do tempo didático às atividades de leitura em voz alta, empréstimo de livros na biblioteca, contações de histórias, rodas de leitura entre outras estratégias para garantir que todos os alunos tenham contato com a literatura e, consequentemente, possam desenvolver o hábito de ler. Entretanto, embora tenhamos notado um maior interesse por parte dos alunos em relação aos livros e um aumento na quantidade de obras que circulam na escola e nas famílias, essas mudanças ainda não correspondem a uma significativa melhoria na compreensão leitora e tampouco a avanços em relação à qualidade dos textos escritos pelos alunos.
A experiência tem nos mostrado que não basta colocarmos os livros à disposição de crianças e jovens pra que eles compreendam a importância desse capital cultural e sejam seduzidos pela leitura. Essas iniciativas, que têm sustentado muitos projetos, não obtêm os efeitos desejados, pois se preocupam prioritariamente com a ampliação do acesso, mas não atentam para dois aspectos também importantes quando se deseja formar leitores: a qualidade dos livros oferecidos e a qualidade das interações que se estabelecem entre a língua e a linguagem por meio deles nas diferentes situações de leitura.
Para gostar de ler, é preciso ler bem. E para ler bem, é necessário ter diante de si bons materiais de leitura e situações que favoreçam um trabalho ativo de construção do sentido do texto. Isso exige oferecer livros variados e de qualidade, selecionados por educadores que planejem atividades que possibilitem, entre outras coisas: compreender o que está escrito e também o que não está, identificando elementos explícitos e implícitos; estabelecer relações entre a obra lida e outras já conhecidas; descobrir os inúmeros sentidos que podem ser atribuídos a ela; justificar e validar a sua leitura com base em elementos encontrados no próprio texto e em seu contexto. Ou seja, formar leitores requer um investimento significativo na construção de uma comunidade que compartilha seus textos, troca impressões acerca de obras lidas e constrói um percurso leitor próprio, inicialmente mediado pelo professor e, posteriormente, com autonomia.
2. Quantidade versus qualidade das obras oferecidas
Todos os anos cerca de três mil novos títulos voltados para crianças e jovens são lançados no Brasil. Além disso, as bibliotecas e salas de leitura são abastecidas, constantemente, por obras enviadas por diferentes iniciativas públicas e privadas. Como escolher dentro desse universo as melhores obras para trabalhar com os alunos? Que critérios poderiam ajudar os professores nessa busca?
É na escola que grande parte dos alunos terá o seu primeiro contato e, em muitos casos, o único com a literatura. Daí a importância de garantir que essa aproximação seja feita por meio de livros da mais alta qualidade. Segundo escreve Eliana Passarán, no livro O papel do editor na promoção da leitura, o primeiro critério que deve guiar a escolha de um livro é o literário. Para ela, a literatura para crianças e jovens não é um gênero menor. Por isso, nas obras oferecidas a esse público, é preciso haver um trabalho reflexivo de construção do texto, da estrutura, da linguagem, revelando uma intenção estética clara.
É comum que professores, especialmente aqueles que trabalham com as séries iniciais, façam a opção de escolher textos curtos ou adaptações sofríveis de clássicos com poucas páginas, justificando-se na concepção de que seus alunos não seriam capazes de compreender obras maiores e mais complexas. Também se apoia nessa visão a prática comum de substituir, durante a leitura em voz alta, termos considerados difíceis por sinônimos conhecidos das crianças. Essas duas posturas apresentam equívocos, pois um leitor não aproveita melhor um livro porque é longo ou curto, mas sim porque “pode acompanhar a história com facilidade, porque ela responde aos seus gostos, porque é capaz de compreender seus significados e apropriar-se deles, porque, através da leitura experimenta um prazer estético, sensorial, intelectual”, escreve Passarán. Além disso, o processo de compreensão leitora dos textos se dá a partir do seu todo e não de suas partes. Por isso, é possível apreender o sentido de uma história mesmo sem conhecer o significado de algumas de suas palavras. Quase sempre, o entendimento do que está sendo dito é dado pelo contexto.
Quando questionados sobre o que orienta a escolha das obras que leem para seus alunos, alguns educadores justificam sua seleção com base em critérios puramente didáticos ou moralistas, dizendo “essa história é boa porque ensina isso” ou “esse livro é ótimo, pois com eles as crianças aprendem que devem ou não se comportar de tal maneira”. Bons livros literários não são escritos para ensinar alguma coisa. O leitor pode até aprender algo com eles, mas essa não deve ser a principal justificativa para a existência de uma obra. Por isso, professores e mediadores de leitura devem atentar à forma como alguns temas são tratados nos livros, evitando abordagens moralistas, didáticas, previsíveis, maniqueístas, paternalistas, simplistas ou estereotipadas que subestimam a inteligência dos leitores e lhes ofereçam uma visão limitada da experiência humana. É preciso garantir que os alunos tenham acesso a diferentes conteúdos, abordagens e pontos de vista para que “se reafirmem ou se confrontem e procurem outros livros em busca de novas premissas e dúvidas, de outros interesses”.
Para Pasarán, bons textos apresentam vocabulário rico e fazem uso inteligente da linguagem. Interpelam, provocam, fazem pensar e não subestimam a capacidade de compreensão dos leitores. Pelo contrário: desafiam a descobrir o que se revela por trás das palavras e convidam ao assombro e ao deleite estético pelo modo como exploram temas diversos, pela forma como dizem o que dizem e pelas experiências que são capazes de provocar nos leitores. Sendo assim, é preciso também garantir a diversidade de gêneros (como poemas, contos, novelas, romances e HQs, por exemplo), pois cada uma dessas formas de expressão da linguagem literária possui seus códigos, suas marcas e conhecê-los possibilita o acesso à cultura escrita a partir de diferentes portas.
3. Professores também precisam se formar como leitores
A qualidade das aprendizagens sobre a linguagem que podem ser obtidas a partir do contato com uma obra é outro aspecto que merece ser considerado no processo de escolha de textos literários. Na obra Andar entre livros: a leitura literária na escola, Teresa Colomer diz que um bom livro se abre como um “mapa cheio de pistas para construir seu leitor, levar-lhe pela mão em direção a terrenos cada vez mais complexos e exigir-lhe que ponha em jogo maior experiência de vida e de leitura” . Daí a necessidade de avaliarmos as obras a partir da perspectiva do itinerário de aprendizagem cultural que oferecem às crianças e jovens, considerando as relações que podem ser estabelecidas entre o texto, os leitores e a mediação educativa.
Por fim, mas não menos importante, ao se discutir critérios para escolha de obras literárias, é fundamental que se ouça também a voz do leitor, identificando o que agrada a crianças e jovens, escutando o que falam sobre as obras, atentando para o modo como explicam suas interpretações e justificam suas opiniões para compreender os caminhos que podem ajudá-los a ampliar suas preferências. Faz-se necessário olhar para esses leitores sem definí-los apenas por sua idade, mas considerando principalmente suas competências e preferências leitoras.
Os critérios mencionados nesse texto não são únicos e irrefutáveis. Eles indicam apenas alguns dos caminhos possíveis na busca por um trabalho de qualidade com textos literários na escola.
Mas, como professores que não se formaram leitores poderão identificar o que é ou não um bom texto literário? Para Colomer, o gosto e o juízo de valor são inseparáveis da experiência de leitura. São aspectos que se formam através da prática. Por isso, faz-se necessário que não apenas os alunos sejam frequentadores dos espaços de leitura, como também os professores se convençam da necessidade de conhecer as obras que se dirigem ao público infantil e jovem para que possam, pouco a pouco, ampliar seus parâmetros de comparação, opinando sobre aquilo que leem e construindo seu próprio horizonte de expectativas sobre o qual poderão projetar cada nova obra descoberta.
É preciso que a escola encontre também espaço para promover entre seus profissionais a análise de bons textos, discutindo os diferentes recursos utilizados pelos autores e os efeitos de sentido que provocam nos leitores, as relações que podem ser estabelecidas entre as obras conhecidas e quais são as mais ricas para o trabalho com a língua e a linguagem. Enfim, é preciso que a vivência de uma comunidade de leitores não se restrinja apenas aos alunos, mas possa envolver toda as instâncias educativas da escola.
4. Bons textos formam bons leitores?
Para que um bom texto literário esteja a serviço do ensino da leitura na escola, é preciso promover o seu encontro com o leitor. E esse encontro, em um primeiro momento, se estabelece nas relações entre a obra em questão, o leitor e suas experiências leitoras (sua biografia leitora, os procedimentos e comportamentos leitores que possui e seu contexto social e cultural, entre outros) em um esforço que demanda tempo, frequência e situações didáticas criteriosamente planejadas para promover a construção de sentidos em torno do texto a ser lido.
É preciso, antes de tudo, lembrar que ler exige vontade, tempo, solidão, concentração e coloca em jogo habilidades específicas. E por isso, se quisermos formar leitores, faz-se necessário dedicar espaço nas aulas para a prática da leitura individual, em atividades que deem sentido às leituras escolares, promovendo o estudo e a análise das obras lidas, ajudando os alunos a estabelecer relações com seu contexto de produção e com outros livros, desenvolvendo projetos que relacionem o trabalho com leitura a projetos de escrita em torno do literário etc. Dessa forma, crianças e jovens poderão, a partir dessas aprendizagens, tornar-se, pouco a pouco, capazes de transferir os conhecimentos adquiridos a todos os textos que venham a ler posteriormente.
Embora tenhamos clareza da importância da individualidade do ato de ler, sabemos que a melhor maneira de formar leitores é o trabalho com a leitura compartilhada. De acordo com Colomer, no livro Andar entre livros: a leitura literária na escola, “compartilhar obras com outras pessoas é importante porque torna possível beneficiar-se da competência de outros para construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta parte de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades múltiplas.”
Nas atividades de leitura compartilhada, é preciso que os diferentes leitores explicitem aos demais os caminhos que seguem para compreender um texto, que comuniquem de que maneira utilizam uma informação oferecida pela obra e como estabelecem relações entre ela e seus conhecimentos. Ou seja, não basta dizer o que se entendeu sobre uma determinada obra. É preciso explicitar como se chegou a esse entendimento. Essa socialização das diferentes estratégias de compreensão leitora contribui, entre outras coisas, para ampliar e aprofundar a compreensão e também aumenta o repertório de procedimentos leitores dos alunos, pois descobrem os muitos caminhos que podem escolher para entender um texto. Além disso, quando apresentam seus argumentos sobre as opiniões emitidas pelos colegas, justificando-se a partir da própria obra em discussão e de suas outras leituras, os alunos podem exercitar o pensamento crítico, eliminando as incoerências e contradições de suas próprias interpretações.
5. As leituras compartilhadas devem ser frequentes e dar espaço a todos os alunos
Ao criar um ambiente propício para conversar sobre os textos lidos, é preciso observar o modo como o professor e demais educadores realizam a mediação entre as obras e os leitores. É comum nas atividades que envolvem a compreensão leitora, que o adulto se coloque como a única voz autorizada na construção do sentido do texto. Nesse caso, os comentários dos alunos se dirigem sempre a atender a expectativa que julgam que o professor tem, procurando encontrar a resposta esperada.
Dessa forma, se habituam a depender sempre da opinião autorizada do educador para compreender a obra e construir sua representação mental sobre ela. Por isso, é bom lembrar que o trabalho com leitura compartilhada também pressupõe o desejo da escuta. Em seu livro Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura, Cecília Bajour afirma que “escutar, assim como ler, tem que ver, porém, com a vontade e com a disposição para aceitar e apreciar a palavra dos outros em toda a sua complexidade, isto é, não só aquilo que esperamos, que nos tranquiliza ou coincide com nossos sentidos, mas também o que diverge de nossas interpretações ou visões de mundo.”
Em uma comunidade de leitores, também é preciso dar espaço e tempo para que, pouco a pouco, todos os alunos sintam-se à vontade para participar da conversa sobre o texto, de modo que o diálogo não fique sempre concentrado apenas no professor e em alguns poucos alunos, detentores das “melhores respostas”. Por outro lado, não se trata de deixar que a interpretação fique apoiada apenas no desfrute dos aspectos subjetivos do texto e limitada a dizer o que gostaram ou não gostaram, o que mudariam etc. Afinal, para além das percepções individuais, todo texto tem o seu discurso organizado para comunicar algo que existe independentemente das interpretações dos seus diferentes leitores.
As leituras compartilhadas devem ser atividades permanentes da rotina escolar. Devem ter objetivos claros e definidos e acontecer com base em textos prévia e criteriosamente selecionados para esse momento. Educadores e mediadores precisam dedicar-se a pensar sobre as perguntas que farão, o modo como apresentarão e adentrarão os livros, as possíveis pontes que poderão construir entre os leitores, o texto proposto e outros textos.
No livro Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação, Yolanda Reyes afirma que é preciso lembrar que os educadores são a voz que conta, a mão que abre portas e traça caminhos entre a alma dos textos e a alma dos leitores. “Seu trabalho com literatura (…) é risco e incerteza. Seu ofício privilegiado é, basicamente, ler. E seus textos de leitura, não são apenas os livros, mas também os leitores. Não se trata de um ofício, mas de uma atividade de vida. Não figura em dicionários, nem nos textos escolares, tampouco no manual de funções, mas pode ser ensinado. E essa atitude será o texto que os alunos irão ler. Quando saírem do colégio e esquecerem datas e nomes, poderão recordar a essência dessas conversas de vida que se teciam entre as linhas. No fundo, os livros são isto: conversas sobre a vida. E é urgente, sobretudo, aprender a conversar.”
Texto publicado no site da Nova Escola em novembro de 2013.