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Memórias literárias: A história de Laura e o Menino do Pijama Listrado

Memórias literárias: A história de Laura e o Menino do Pijama Listrado

Mara Dias compartilha suas impressões sobre as descobertas de sua filha Laura em seu emocionante encontro com o Menino do Pijama Listrado.


A fala de uma criança
 

Nunca vos aconteceu, ao ler um livro, interromper constantemente a vossa leitura, não por desinteresse, mas, pelo contrário, por afluxo de idéias, de excitações, de associações? Numa palavra, não vos aconteceu ler levantando a cabeça?

(BARTHES, 1987, p. 27, grifos do autor)

 
 
Laura iniciou a leitura do livro O menino do pijama listrado com muita disposição. É uma leitora apressada, faminta. Ainda não “chegara à idade em que as segundas ou terceiras ou quartas leituras dão mais prazer que as primeiras” como acontece com Amadeo Oliva(1), mas, assim como ele, estava mergulhada na leitura, sem querer ser interrompida. Lia com uma pressa demorada. Pressa porque estava enredada na história, queria avançar para compreender, mas da mesma maneira, a leitura a fazia parar, a leitura lhe impunha indagações. Sua leitura era, como descreveu Barthes(2) “simultaneamente desrespeitadora, pois corta o texto, e enamorada, pois volta a ele e dele se alimenta”.
A leitura corta o texto quando ao ler Laura para com certa constância e faz perguntas em voz alta. Note-se que as perguntas apesar de se dirigirem a mim não esperavam por minha resposta: a verdadeira interlocutora de suas indagações era a sua própria leitura.
 

Quem são essas pessoas?

 
Ela pergunta. Quem são essas pessoas que se vestem de modo idêntico? Quem são essas pessoas, esses homens e meninos e velhos? Quem são… E a leitora tenta encontrar em sua mente pessoas semelhantes àquelas. Neste momento, ela não está nem fazendo uma análise do texto, nem compondo uma imagem em sua mente. Neste momento, sua leitura se dispersa num afluxo de idéias. Para em seguida voltar ao texto, pois “seu coração estava entre as páginas do livro” (CALVINO, 1998, p.85).
 

Quem são as pessoas do outro lado da cerca?

São ladrões?

 
Ao fazer essas duas questões, um gesto seu me chamou a atenção. Marcou a página em que estava e leu a orelha do livro. Após isso, sentou-se e continuou a leitura agora em outra posição. Observei que ela abriu o livro na página marcada, mas seu olhar se dirigiu para a página anterior de onde recomeçou a leitura. O que ela procurava? Por que não continuou a partir do ponto em que parou? Parece que buscava pistas no texto.
Seu lugar preferido para ler era o próprio quarto. Ela se acomodava na cama, deitada de bruços. As indagações eram feitas olhando para frente e à frente dela estava a parede. Ela tirava os olhos do livro, levantava a cabeça e falava:
 

São presos?! 

Não pode ser, tem crianças junto também?

Por que estão ali?

O que elas (as pessoas) fazem nesse lugar?

 
Em outro momento, fez uma pergunta diferente, que me chamou a atenção por dois motivos: primeiro, por que ela pedia uma resposta minha, ela estava em pé e já havia fechado o livro e terminado a leitura por enquanto; e segundo, pois sua pergunta era de outra natureza, sua dúvida agora dizia respeito a um elemento interno da narrativa:
 

Quem está contando a história? Parece que é o Bruno, mas não é. Acho que é um narrador sabe-tudo. Quando Bruno chora, as lágrimas saltam de seus olhos, parece que é ele quem está falando com a gente. Eu sinto suas lágrimas.

 
Ela sabia que eu também havia lido o livro, pois eu o indiquei a ela. Comentei que o nome que ela deu para o narrador o descreve de modo exato.
Em alguns momentos depois de ler, já fora do quarto, ela conversava comigo.
 

Eu me lembrei de outra história que você leu pra mim(3). De uma menina que morreu. As pessoas do outro lado da cerca são como aquela menina? Como ela se chama? Esqueci.

Foi uma história triste.

 
Concordei com ela sobre a semelhança na situação e disse que eu também considero as duas histórias tristes. Até este ponto do livro, dois dias se passaram do início da leitura. Ela terminaria a história no dia seguinte.
Chegando ao final, como de outras vezes, ela retirou seus olhos da página e disse:
 

Eu não acredito! Bruno vai ao outro lado da cerca com Shmuel. 

Ih, ele também está careca. Vão confundir ele. 

O que acontece lá dentro?

 
Suas últimas palavras foram:
 

Não acredito. 

Não acredito. 

O que aconteceu com Bruno?

O Bruno morreu?!

Bruno morreu.

Após a leitura, sua conversa retornou a mim. Ela compreendeu que Bruno e seu amigo morreram, mas o que aconteceu dentro daquela sala, ela não entendia.
 

Como eles morreram?

 
Que leitora é essa?
 
A experiência de leitura descrita foi vivida por uma menina de 9 anos. O que nos interessa aqui é investigar o diálogo, o texto-leitura, o texto que Laura escreveu em sua cabeça quando a levantava. O caso analisado visa a explicitar a aproximação leitor/leitura, o que é diferente de dizer leitor/texto ou leitor/livro.
Laura frequenta o 5º ano do ensino fundamental. Lê com facilidade os livros indicados pela professora e também os retirados da biblioteca da escola – local que frequenta com regularidade desde o início de sua vida escolar. Observando seu percurso leitor, vi que transita pelos livros com tranquilidade e faz leituras bem variadas. Passa pelos clássicos infantis e por leituras contemporâneas com a mesma disposição.Ela tem uma preferência especial por gibis da turma da Mônica, mas lê Calvin e Haroldo, Mafalda e TinTin. Também procura por livros que trazem animais ou meninas da mesma idade dela. Por vezes, abandona algumas leituras. À época do episódio descrito acima, ela estava lendo em sala de aula Caninos brancos na adaptação de Monteiro Lobato.
As indagações e os comentários ao longo de sua leitura se configuravam como momentos de parada para pensar, formular hipóteses e poder continuar. Semelhante ao leitor(4) de Calvino com o olhar vagando pelos ares, porém com uma fixidez intensa e explica:
Não se espante de ver meu olhar constantemente perdido. Este é mesmo meu modo de ler, é só assim a leitura me é proveitosa. Se um livro me interessa de verdade, não consigo avançar além de umas poucas linhas sem que minha mente, tendo captado uma idéia que o texto propõe, um sentimento, uma dúvida, uma imagem, saia pela tangente e salte de pensamento em pensamento, de imagem em imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que sinto a necessidade de percorrer até o fim, afastando-me do livro até perdê-lo de vista.
Porém a volta ao texto encontra uma leitora transformada, a cada parada que fazia, ela se retirava daquela composição organizada que é o texto, como diz Barthes, e se dirigia para a dispersão da leitura: ela associava ao texto outras idéias e outros significados.
Será que qualquer livro pode proporcionar esta dispersão? Em que medida a leitura de O menino do pijama listrado difere de outras leituras? Quais livros provocam essas inquietações? Essas eram questões que eu me fazia enquanto a observava.
A partir das considerações de Barthes sobre escrever a leitura, tentarei responder a essas questões. Pelas indagações suscitadas, ao ler O menino do pijama listrado, as leituras emocional e racional se mostram numa interação dialética – sem qualificar aqui qual é a mais importante ou a melhor – mas identificando que esse processo é importante por aquilo que a interação permite, alargando os horizontes de expectativa do leitor e ampliando as possibilidades de leitura do texto e da própria realidade social. O processo de identificação necessário para fruição da leitura, pouco a pouco, se transforma em vontade de apreender a criação, de compreender o texto, indagá-lo, dialogar com ele.
Esse diálogo se realiza pelas falas da leitora. Cumpre destacar que houve uma identificação da leitora com o texto desde o início, pois o narrador conseguiu capturá-la justamente por serem idênticas as angústias dela e do personagem Bruno.
Mais a frente, a leitora mostrou conhecer e saber utilizar as estratégias de abordagem de um texto ou os protocolos da leitura ao ler a orelha do livro e ao reler a página anterior para auxiliar na compreensão. Sua atitude pode parecer óbvia, contudo revela uma experiência leitora que sabe o que fazer quando o próprio texto não responde suas dúvidas.
Merece destaque sua indagação a respeito do narrador. Pensar sobre questões que dizem respeito à construção da narrativa pode demonstrar que ela está a caminho de uma leitura mais profunda e investigativa. O comentário feito sobre o narrador leva a pensar que ela está, mesmo que de maneira tímida, “colocando-se dentro da produção com o objetivo de reencontrar como algo foi criado”. Não acredito que a jovem leitora pensasse em imitar o autor da obra lida, mas sua leitura contempla questões que visam compreender o texto e dialogar com ele. Pode ser que a leitora esteja sentindo a “necessidade de colocar-se dentro da produção, não dentro do produto”(5). Concluir que o narrador sabe tudo do Bruno demonstra que Laura encontrou um indício para compreender o texto.
Posteriormente, ao produzir um texto escrito em situação escolar, a leitora reproduziu a expressão “com lágrimas nos olhos” tal qual Bruno estava no momento em que ela pensou sobre o narrador. Interessante observar que a lembrança do uso de tal expressão só veio na segunda versão, quando ela teve tempo para refletir e melhorar seu texto. Se, como afirmou Barthes “desejamos o desejo que o autor teve do leitor quando escrevia, desejamos o ama-me presente em toda a escrita.” Será esse seu desejo – inconsciente provavelmente – de (re)produzir em seu leitor o seu próprio ato de leitura?
[…] o produto (consumido) é transformado em produção, em promessa, em desejo de produção, e a cadeia dos desejos começa a desenrolar-se, cada leitura valendo pela escrita que engendra, até o infinito. (Barthes, p. 36)
Outro fator a ser considerado é o de Laura já ter condições de confrontar textos e leituras, pois suas leituras anteriores prepararam caminho para tais indagações. No texto-leitura que ela escrevia em sua mente, ela recordou de um livro que li em voz alta.
Ao terminar O menino do pijama listrado, interessou-se por ler O diário de Anne Frank. Em relação a essa leitura, fez o seguinte comentário:
 

Fico imaginando Anne Frank escrevendo. 

Eu deito na cama para ler e tenho que parar, pois quero imaginar como ela escrevia. 

Por fim, ao término de Anne Frank, ela iniciou uma leitura bastante diferente das duas anteriores. Agora ela tinha em mãos Meu querido diário otário cujo enredo é bastante previsível para uma leitora como ela. Durante a leitura desse livro, ela usou a palavra encantar pela primeira vez.
 

Eu adoro esses livros que me encantam.

 
Esse livro que não quebrou as expectativas da leitora, em nenhum momento o gesto de levantar a cabeça pelo afluxo de idéias ocorreu. Ela consumia o livro, não sobrando espaço para os pensamentos. Ela tinha pressa em ler, mostrava resistência ao ter que largá-lo. Quando indagada sobre os motivos da pressa, falou:
 

Eu gosto de ler o livro todo de uma vez. Eu me empolgo com o livro e se eu paro não consigo ler de novo.

Empolgar é entrar na história, é imaginar. Se eu paro e volto mais tarde, demora um pouco pra imaginar de novo. 

 
De fato, ela o leu de uma única vez.
 
 (1) Personagem do conto “A aventura de um leitor” de Italo Calvino. Amadeo está em férias e se refugia para ler no ponto mais distante da praia esperando assim não ser incomodado. Porém lá encontra uma mulher que interrompe sua leitura. O prazer de ler perpassa por todo o conto.
(2) Roland Barthes. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 27
(3) Ela se refere ao livro Anne Frank, uma adaptação ilustrada das Edições SM.
(4) Referência a um leitor qualquer do romance Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 257
(5) Maria Helena Martins. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 71.