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Histórias que dão medo ou coragem?

Histórias que dão medo ou coragem?

Vencemos o medo lidando com ele, falando sobre ele, por isso é interessante ler para as crianças, mesmo que a história cause um pouco desse sentimento.


“Li para a minha turma uma história na qual aparece uma bruxa e uma das crianças ficou com medo, quis até sentar perto de mim. Acho melhor não ler mais, a família pode não gostar.” (Professora de crianças de 4 anos)

“Meu filho contou que a professora leu na escola uma história de lobo e por isso estava com medo de dormir sozinho. Em outro dia nem quis que eu lesse a história da Chapeuzinho Vermelho. Não sei o que fazer.” (Mãe de criança de 3 anos)

Quando faço encontros sobre a leitura nas escolas, Volta e meia situações como estas são narradas por professores(as) e coordenadores(as). Em muitos casos, a solução encontrada é evitar a leitura das histórias com personagens ou situações que possam causar medo nas crianças.

Mas será que é o melhor jeito de tratarmos da questão? O que pensar a respeito? O que entendemos sobre esse medo que surge? O que pode estar por detrás de decisões como essa?

Vamos levantar aqui algumas possibilidades. Muitas vezes os adultos acreditam que o melhor caminho é deixar de ler as histórias que podem assustar as crianças pois têm repulsa à violência. Talvez pensem que devemos poupá-las de tais sentimentos e deixar tal sofrimento para “mais tarde”.

Todos sabemos que a violência existe e aparece no mundo sob variadas representações, negar a sua existência não nos parece a melhor maneira de tratá-la.

As crianças são atentas e muito curiosas, observadoras de tudo o que as cercam, seres pensantes que vivenciam experiências variadas e vão compreendendo as relações entre as pessoas e o funcionamento do mundo. Merecem nossa atenção, nosso cuidado e nosso respeito.

O melhor caminho não parece ser o de evitar situações ou omitir informações, mesmo porque, muitas vezes as crianças percebem situações que alguns adultos tentam esconder sem sucesso e acabam lhes gerando angústias, porque se tornam questionamentos sem respostas ou observações sem a mediação de uma pessoa mais experiente, que poderia agir como mediadora de tais reflexões.

Ou seja, sentir o medo causado por uma história pode ser uma ótima oportunidade para acompanhar o crescimento e amadurecimento das crianças, seus pensamentos e a construção de seus conhecimentos e valores.

Bruxa existe?

Há quase 15 anos aproximadamente, lia uma história de bruxa para minha filha Cecília, que na época tinha 3 anos de idade. Em um determinado momento da leitura em voz alta que eu lhe fazia, ela me interrompeu e perguntou:

_ Mãe, bruxa existe?

Querendo responder prontamente a sua questão e procurando tranquilizá-la respondi:

_ Não querida, bruxas só existem nas histórias, nos livros, nos filmes…

Cecília olhou o livro novamente, olhou mais uma vez para mim e antes que eu pudesse voltar à leitura emendou:

_ E ladrão? Existe?

Como sempre tive o princípio de que não mentiria para a minha filha, respondi que sim, que ladrão existia.

Minha pequena imediatamente se pôs a chorar:

_ Por que, mãe? Onde ele mora?

Naquele momento pude perceber, que minha filha, ainda tão pequena se perguntava sobre a existência dos seres que povoavam a sua vida e o seu imaginário. Quais eram de verdade? Quais os da ficção?

Até os 3 anos de idade as crianças ainda não distinguem o que é real e o que é fantasia. As experiências vividas promoverão essa compreensão. As crianças que vivem nas grandes áreas urbanas, por exemplo, poderão fazer essa construção quando forem ao teatro ou assistirem a um filme e aprenderão o que é um desenho, uma personagem, um figurino de lobo, por exemplo.

Por meio da leitura literária e informativa compreenderão que os lobos existem, mas os que estão nos contos de fadas são diferentes daqueles lobos que vivem nas florestas, desertos, montanhas, campos e aparecem nos livros informativos, nas enciclopédias ou nos documentários.

Além disso, Cecília estava atenta e interessada no papel das personagens da vida e da literatura. Por que perguntou especificamente do “ladrão”? Talvez tivesse escutado alguma conversa ou acompanhado algum noticiário de TV na companhia dos adultos de sua família. O que nos interessa pensar aqui é que estava se perguntando sobre as pessoas que habitam o mundo, o que representam, o que fazem, por quais motivos o fazem e onde vivem.

Lembro que naquele dia tentei buscar explicações e acabei falando, de forma breve, sobre a injustiça social, sobre o comportamento dos seres humanos, sobre a honestidade, procurando palavras para dizer àquele pequenino ser, algo revelador para ela e muito difícil para ambas, por motivos diferentes. Talvez eu pudesse ter buscado apoio na própria literatura e ter respondido: “Sim, ladrões existem, mas tem os caçadores de ladrão que não vão deixar ele te pegar”.

O que vale ressaltar é que minha filha, ainda tão pequena já estava se deparando com um lado mais complicado da vida.

O medo é parte do ser humano

Precisamos lembrar que faz muito tempo que a humanidade sente medo e que ele se encontra em várias situações e momentos de nossas vidas.

Nos tempos mais remotos, os seres humanos sentiram medo da natureza e exatamente por não saberem explicar seus fenômenos criaram os mitos – para poder explicar o desconhecido, para nomeá-lo.

As crianças podem sentir medo do escuro, de que sua mãe /seu pai não volte para buscá-la, medo de seres que não existem, medo de bichos estranhos, da morte, de pessoas fantasiadas, daquilo que é novo, desconhecido etc. Nem sempre sabem compreender esses medos e expressá-los.

Personagens como monstros, feiticeiros malvados, bruxas, fantasmas, trols, gigantes ameaçadores são importantes, porque podem servir como representação de tantos possíveis medos que as crianças sentem.

Assim como os mitos para os povos antigos. Ajudam a nomear o medo, a canalizá-lo. São figuras que representam o mal, o amedrontador, do que é violento, feroz.

Não sei o quanto Ceci entendeu de tudo o que lhe foi explicado. Mas teve algo importante que aconteceu. Lembro que a abracei e pedi que ficasse calma, que soubesse que estávamos juntas e que não se preocupasse, pois adultos olhavam por ela e tomaríamos cuidado. Assim ela se acalmou, eu também e terminamos a leitura da história da bruxa.

Vencemos o medo lidando com ele

O que mais podemos pensar sobre isso? Que bom que minha filha pode ter espaço para me perguntar sobre sua dúvida e falar de seu medo. Que bom que pude ouvi-la, estar ao seu lado para dizer direta e/ou indiretamente: Filha, assim é a vida. Estamos juntas, estou com você. Ficaria igualmente satisfeita se essa conversa, originada pela leitura do livro, tivesse ocorrido com o pai da Ceci, com um de seus avós ou com um(a) professor(a) que acolhesse suas inquietações, oferecesse informações plausíveis e se mostrasse parceiro(a) nessa caminhada.

A literatura é esse encontro com as palavras, com a forma estética, com o mundo encantado, e por meio das histórias as crianças podem pensar a respeito do mundo que as cerca, sobre as relações, vão sabendo mais de si mesmas e de seus sentimentos.

 As crianças desde bem pequenas já sentem alegria, medo, raiva, saudade… e aprendem a nomear e explicar o que sentem quando alguém, por meio da linguagem, nomeia isso a ela: “Você está triste porque seu peixinho morreu.” “Você gostou que a sua prima vai dormir em casa hoje! Está feliz!” “Seu irmão está com ciúme porque sempre deixo você sentar no meu colo quando leio histórias pra vocês.”

Além das conversas do cotidiano, as histórias narradas oralmente ou lidas nos livros também tratam dos sentimentos e por isso são ótimas oportunidades para ouvirmos o que as crianças sentem e o que pensam. Quando sente medo de alguma personagem e/ou situação apresentada na história, podemos aproveitar a oportunidade para ouvir quais motivos a afligem ainda que nem sempre a criança consiga nomear, mas poderá falar do que consegue perceber da própria história e isso já é muito valioso.

Vencemos o medo lidando com ele, falando sobre ele, por isso é interessante ler para as crianças, mesmo que a história cause um pouco desse sentimento.

Como parceiros, nosso papel não é evitar que o sintam. Em oposição a isso, se pudermos trabalhar com o que perguntam, sentem e pensam, poderemos ajudá-las a se tornarem mais reflexivas, fortes, corajosas e humanas. Porque um dia, inevitavelmente, irão sentir medo na vida. E as histórias infantis permitem que isso seja feito de uma maneira simbólica e segura.