Chão de peixes: o rio da memória de Lúcia Hiratsuka
Lúcia Hiratsuka, autora de Chão de peixes, fala sobre a natureza, a ancestralidade e a busca pelo simples e pelo essencial em sua obra
A curva de um capim, uma mancha nas asas de uma libélula, as pausas e os silêncios dos traços: tudo isso é fundamental em Chão de peixes, livro de Lúcia Hiratsuka enviado em julho aos leitores experientes da Taba.
“Imagens e palavras, juntos, criam uma sensação e podem reverberar no leitor”, explica a autora que, com mais de 20 livros publicados, já recebeu prêmios como o Jabuti e FNLIJ. Ela nos conta que, em seu processo criativo, pensa o texto e a imagem como elementos complementares ao sentido do livro. Resta, então, “cortar os excessos”, aquela palavra que se faz desnecessária com a presença da imagem ou vice-versa. E se pergunta: “O que é essencial nesse quintal da memória?”.
Quintal este que guia a busca pela identidade sua e de seu trabalho, com raízes bem firmadas na infância caipira e japonesa. Tudo começou no sítio de Asashi, próximo à cidade interiorana de Duartina (SP), onde aprendeu primeiro o idioma japonês. Esse descobrir-se teve continuidade no Japão, país de seus avós que visitou mais tarde para estudar o livro ilustrado e onde passou a enxergar de forma mais nítida o Brasil que se faz presente nela.
De lá vêm algumas de suas referências, que mais tarde a autora trouxe ao universo do livro ilustrado. É o caso do sumiê, uma técnica de pintura oriental milenar, que utilizou na ilustração de Chão de peixes e que ela demonstra no vídeo abaixo.
Confira a conversa completa com Lúcia Hiratsuka, autora de Chão de peixes.
Lúcia, é muito perceptível a importância da infância, da memória e da ancestralidade na sua obra, inclusive numa mistura que você já citou em outras entrevistas do caipira com o japonês. Essas questões foram sempre claras para você? Como isso foi colaborando para criar a sua “voz” na criação artística?
O sítio onde nasci e cresci tem o nome de Asahi (sol da manhã). Uma palavra japonesa, mas esse chão fica no Brasil.
E surgem as perguntas: quem sou eu nessa relação com o lugar, com o outro? O que me move neste momento? Sinto que a identidade vem a partir da percepção do mundo, dos sonhos, dos encontros… Conhecer o país dos meus avós também foi importante para perceber o quanto sou brasileira.
A “voz” surge devagar, o fazer artístico me conecta com a minha identidade.
Você diz que, ao ilustrar seu próprio texto, aproveita para modificá-lo o quanto quiser: cortar palavras que já não são mais importantes após o processo de ilustração, por exemplo; adaptar as duas linguagens. Como é essa simplicidade que você busca? Qual é a potência dela na expressão artística?
Tento eliminar alguns ruídos, tanto nas imagens como nas palavras, para potencializar o que há de essencial. E detalhes são percebidos: a curva de um capim, uma mancha nas asas de uma libélula, ou uma pincelada que vai esmaecendo, a sonoridade, as pausas, e outros. Imagens e palavras, juntos, criam uma sensação e podem reverberar no leitor.
A natureza é outro elemento bastante presente na sua obra. Como é a sua relação com ela? Como ela se faz presente no seu processo criativo?
Eu me conecto ao meu quintal, busco imagens, sons, histórias, tudo guardado por um rio chamado memória.
No cotidiano, olho a trama de uma árvore, silhueta projetada na parede, capim na calçada, folhas secas, o formato de algum casco ou semente. São pausas que me inspiram.
Em Chão de peixes, você usa a técnica de pintura sumiê, que não é comum na ilustração de livros. Como foi essa experimentação? Quais referências foram importantes nesse seu processo?
Aprendi com o mestre Massao Okinaka. No início é preciso seguir o mestre, depois, vem a busca por um caminho pessoal. Partir de algo que desperta o olhar, por isso uma ótima entrada para a poesia.
Ao introduzir na ilustração, em alguns trabalhos, eu misturei com a aquarela.
O Chão de peixes foi um livro em que predomina o preto da tinta sumi e, mesmo quando entra cor, mantive a simplicidade.
Poderia contar a história desse livro? Como ele foi gestado? Como foi o processo de criá-lo?
Escrevi primeiro vários textos curtos, 10 ou 15 linhas, em prosa, repletos de imagens em palavras. Pintei alguns sumiês e percebi o excesso no texto. Aí veio um processo longo de cortar, e fazer as perguntas: o que é essencial nesse quintal da memória? E a relação das palavras com as imagens? E a sonoridade?
Destaco também o trabalho da designer, Debora Barbieri, que escolheu uma tipologia com todo o cuidado. E da editora Pequena Zahar, que cuidou com carinho de todo o processo da edição até a publicação.