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Descobrimento do Brasil para quem?

Descobrimento do Brasil para quem?

Costumamos aceitar o calendário sem pensar muito sobre o que as datas significam. O descobrimento do Brasil foi para quem, se os povos indígenas já habitavam o continente antes de os europeus chegarem?


Nós desenvolvemos o hábito de criar referências para nos orientarmos tanto no espaço quanto no tempo. No caso do tempo, o calendário é a mais comum, indicando a passagem da nossa vida cotidiana, mas também datas que nos ajudam a criar um sentido coletivo e uma história: ao celebrarmos a Páscoa ou o Natal, identificamos a força do cristianismo na cultura brasileira, assim como, ao fazermos feriados no Descobrimento do Brasil ou na Proclamação da República, reforçamos uma narrativa sobre a formação do país.

O tempo, apresentado desse modo, cria uma organização que nos ajuda a compreender as experiências do passado e a projetar nosso futuro. Entretanto, não temos o costume de pensar sobre isso. Na maior parte das vezes, aceitamos o calendário, incorporando suas referências sem pensar muito sobre o que elas significam. Por exemplo, não percebemos que cada data foi escolha de um grupo num certo momento, ou seja, não paramos para pensar que os eventos destacados no calendário poderiam ser outros, caso ele fosse construído por outras pessoas ou grupos. Não nos abrimos para a existência de outras narrativas possíveis, que organizariam de modo distinto nossas compreensões.

Estamos no mês de abril, quando celebramos – com intervalo de um dia – o Dia do Índio[1] e a chegada de Cabral no que depois foi chamado de Brasil. Talvez seja importante parar um instante, pensar sobre seus significados e ver como a simples aceitação do calendário nos deixa de olhos fechados. Ailton Krenak pode ajudar: “Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente e a cultura do continente americano, numa data ou tempo demarcado que pudéssemos chamar de 1500 ou 1800. Estamos convivendo com esse contato desde sempre”[2].

Como a afirmação de Krenak nos ajuda a compreender? Primeiro, sem dúvida, na clareza de que, quando os europeus chegaram, eles não se depararam com todos os povos indígenas existentes nas Américas e ainda hoje existem povos isolados. Nos faz ver que a palavra índio – inventada pelo europeu – criou uma homogeneidade onde havia diferença, uma ilusão que não mais se sustenta. Mas… sua reflexão pode ir além do contato físico estrito senso e pode nos fazer pensar que os encontros entre culturas voltam a acontecer a cada vez que mudamos nossas perspectivas, pois as histórias que contam se modificam.

Referendar a chegada de Cabral é celebrar a história de povos europeus que avançaram sobre outros continentes e levaram seu modo de ver o mundo, transformando os lugares onde se fixavam. O que contrasta fortemente com a celebração do Dia do Índio, data criada no século XX por pessoas não indígenas que estavam preocupadas com os povos originários justamente em função do desdobramento trágico da colonização para essas sociedades. Caso prestássemos atenção nesses significados, a proximidade de duas datas em abril nos deixaria perplexos pois, apesar de terem uma conexão histórica – os colonizadores e os colonizados -, elas nos apresentam valores e narrativas muito diferentes.

O paradoxo, porém, poder ser esclarecido quando lembramos a distância entre épocas e situações que criaram as duas datas comemorativas: enquanto, no XIX, a inclusão da chegada de Cabral ajudaria a contar a história da invenção de um país nos moldes europeus, no XX, a celebração dos indígenas seria um esforço para dar visibilidade a histórias ocultas pela narrativa anterior.

Estamos no XXI. Quais são as atuais histórias ocultas? Krenak também afirma que “o contato entre as nossas culturas diferentes se dá todo dia”. Eu concordo e pergunto: Será que há algo oculto para você? O que você celebra no Descobrimento do Brasil e no Dia do Índio? No seu calendário particular, você já encontrou outras narrativas? O que você conhece da literatura indígena? Quais títulos leu? Talvez seja sua hora de refletir sobre o que significa descobrir e o que significa Brasil… Os livros não são poucos, as histórias dizem de diversos povos… agora, caso você não as conheça, qual será sua orientação ao pensar o país em que vive?

Convido a conhecer Lia Minápoty, Yaguarê Yamã, Olívio Jekupé, Cristino Wapichana, Edson Krenak e muitos autores indígenas que, com Daniel Munduruku – o primeiro a editar um livro para crianças -, nos permitem descobrir outros mundos, narrativas que o modo europeu de ver o tempo e o espaço nos ocultou.


[1] Entre 14 e 24 de maio de 1940 foi realizado no México o I Congresso Indigenista Interamericano. Idealizado por não indígenas para discutir a situação dos povos originários, havia o interesse de que indígenas participassem. Eles se abstiveram ao início, mas no dia 19 de abril incorporaram o evento, sendo portanto a data escolhida para referendar as lutas dos povos indígenas. No Brasil, o Dia do Índio foi instituído apenas em 1943. Atualmente transita legalmente a solicitação de mudança do nome de Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas. É projeto de lei (5466-B).

[2] “O eterno retorno do encontro”, in: NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 25.