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Lendas indígenas brasileiras

Lendas indígenas brasileiras

Como se consolidou a literatura indígena no Brasil e nós leitores passamos a conhecer lendas indígenas que mostram diversas formas de ver e estar no mundo?


Estamos sempre correndo contra o tempo e acabamos aceitando as coisas como elas se apresentam para nós, sem nos perguntarmos muito o porquê de elas serem como são. 

É bem possível que, quando estávamos na escola, não tenhamos nos perguntado de onde surgiram as matérias que estudamos e hoje consideramos normal que as crianças estudem o mesmo. Mas, você já se perguntou sobre o que nossos tataravós estudavam na escola? 

Uma comparação fará ver que muitas coisas mudaram e que apesar de, como nós, nossos antepassados terem estudado português e matemática, eles tiveram outras disciplinas como ‘latim’ e hoje existem conteúdos com os quais eles nem sonhariam (como ‘informática’).

Diferente, não é? Agora, quer ficar perplexo? Volte mais atrás no tempo: como poderia haver aula de português antes dessa língua existir? Você sabia que a primeira gramática da língua portuguesa só foi escrita em 1536? 

Tudo bem que são séculos até o presente, mas não é uma perspectiva interessante se dar conta de que as disciplinas que estudamos tiveram uma origem e que, antes, elas não eram ensinadas na escola? 

Outra perspectiva é lembrar que a língua portuguesa já teve inúmeras alterações, ou seja, o que os tataravós aprenderam na escola foi diferente do que nós aprendemos.

Direcionando essas reflexões para o campo da literatura, apesar dos seres humanos produzirem textos (que consideramos literários) desde o desenvolvimento da escrita, a ideia de reuni-los numa área de estudo e de especificá-los em gêneros literários é relativamente recente. 

Até o fim do século XVIII e início do XIX não se usava a palavra literatura e quando ela foi consolidada foram estabelecidas regras, como só serem aceitos materiais escritos. Conclusão: qualquer ficção ou poética da oralidade foi desconsiderada, sendo, portanto, eliminada dos conteúdos a serem estudados, permanecendo desconhecida de muitos. 

Hoje em dia, os teóricos da literatura pensam de modo diferente e a expressão ‘literatura oral’ reconhece sua existência. Além disso, algumas dessas histórias orais foram escritas pelo esforço de pessoas interessadas em recolhê-las e transmiti-las.

Os mitos e as lendas fazem parte desse conjunto de literatura oral que, apesar de atravessar gerações durante muito tempo não haviam sido escritas até que pessoas como os Irmãos Grimm registrassem histórias populares em áreas de língua germânica ou como faz atualmente no Brasil o pesquisador Marco Haurélio.

No Brasil, a aceitação e valorização da literatura oral convergiu, desde o fim do século XX, com o movimento indígena – na luta por visibilidade e reconhecimento – e com um aumento de produção de livros em nosso país, o que gerou inúmeras obras. Graças a isto, atualmente, temos um vasto repertório ao nosso dispor.

Existe literatura indígena?

Sabendo um pouco mais sobre a ideia de literatura, da existência de livros indígenas, de livros escritos por não-indígenas com histórias indígenas e localizando que a ausência de livros não necessariamente indica ausência de literatura, talvez seja mais simples responder à pergunta.

Em 1980 foi publicado no Brasil o primeiro livro indígena: Antes o mundo não existia. Ele foi reeditado em 2019 e no site da editora podemos saber um pouco sobre como a obra foi escrita.

“Em 1978, Berta Gleizer Ribeiro, durante uma viagem ao Rio Negro para pesquisar o trançado indígena, teve notícia de que dois índios Desana haviam escrito a mitologia de seu povo. Berta foi ao encontro deles no Rio Tiquié. Durante um mês e meio trabalharam juntos. Berta datilografou, revisou e reescreveu o texto desse livro.”

A mitologia de um povo. Histórias transmitidas pelos antepassados explicando o mundo e orientando as novas gerações sobre como lidar com ele. Histórias que poderiam não chegar nunca aos olhos e ouvidos de não-indígenas, mas que se disponibilizaram em texto escrito.

Atualmente são reconhecidas mais de 300 etnias de povos indígenas que falam mais de 274 línguas diferentes no Brasil. Conseguiu imaginar a variedade e a riqueza de formas de ver o mundo que isto representa? A extensão de literatura oral que esse dado representa?

Para nossa felicidade, o livro de 1980 foi o primeiro de muitos e é importante dizer que a maior parte das obras indígenas já não possui o tipo de mediação que a antropóloga Berta Ribeiro realizou. Dominando a língua nacional além da materna, os indígenas puderam redigir eles mesmos os textos que apresentavam.

Esse universo cultural é explorado em diferentes gêneros literários: 

  • Eliane Potiguara e Graça Graúna são conhecidas por suas poesias
  • Kaká Werá por seus textos históricos; 
  • Cristino Wapichana por suas obras de livros infantis.

E há autores que circulam entre diferentes tipos de texto, como Daniel Munduruku, que publicou tese acadêmica, livro de contos, livro infantil, romance. 

Os escritores indígenas tomaram as letras como uma estratégia contra o esquecimento e o apagamento de suas referências. Um recurso político para se fazerem existir num mundo que insiste em ocultá-los ou eliminá-los: a literatura como um imperativo para dizer sobre suas formas de vida e seus imaginários.

Lendas indígenas e literatura no Brasil

Escrito por Maria Kerexu e seu marido, Olívio Jekupé, A mulher que virou urutau é uma lenda Guarani sobre o amor verdadeiro: uma indígena que se apaixona pela lua e sobre o surgimento do pássaro urutau. 

A origem do beija flor foi escrito por Yaguarê Yamã e apresenta uma lenda Maraguá

Cristino Wapichana escreveu A boca da noite , uma aventura infantil que expõe um pouco do cotidiano de aldeia Wapichana.

Essas são apenas algumas histórias que ganharam o mundo e prêmios!

Começaram como literatura oral no círculo pequeno das aldeias, mas, ao serem publicadas em português, puderam passar a fazer parte do conhecimento de outras etnias e também de não-indígenas. 

Como literatura acessível, são histórias que nos permitem aproximar de outras verdades e cosmovisões, ampliando nossos horizontes e imaginários. 

Cabe questionar: com essa ampliação, não estaria na hora de revermos preconceitos sobre os povos indígenas? Não estaria na hora de conhecê-los por suas referências em lugar de impor as nossas a eles? E já que identificamos que a vida e os conteúdos escolares mudam, não estaria na hora de revermos o cânone do que seja a literatura e incluir obras indígenas?