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Mediação de leitura online: o ‘olho no olho’ possível

Mediação de leitura online: o ‘olho no olho’ possível

Com os desafios da educação à distância, os educadores Helder Guastti e Malu Carvalho contam como fazem mediação de leitura online


Era final de março de 2020 e as escolas brasileiras começavam a fechar no que seria o início da pandemia de Covid-19 no país. Ninguém imaginava que ela se alastraria por tanto tempo, mas bastantes educadores suspeitavam de algo: não poderiam faltar histórias nas casas das crianças. Literatura, arte, poesia e fantasia seriam fundamentais para passar por esse momento tão delicado.

Muito mudou desde então, muitas adaptações para o formato online ou até híbrido das aulas, e algumas experiências interessantes no que diz respeito à mediação de leitura online. Como fazer os alunos se interessarem pelas leituras feitas do outro lado da tela? Será que esse novo modelo funcionaria?

Foi o que preocupou Helder Guastti, professor de alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, que teve experiências positivas no ambiente digital, apesar de no início ter ficado inseguro com a mediação de leitura online. “Vejo como [as leituras] têm tomado uma carga emocional e sentimental muito grande. Não sei se é porque estamos em um período em que todos estamos muito carentes, tivemos de nos adaptar de mil maneiras e assim ficamos mais abertos a essas possibilidades.”

Uma experiência que gerou bons frutos foi a execução do projeto Entre Neves, realizado durante a pandemia, em que decidiu ler as obras do escritor e ilustrador André Neves com as crianças, com o objetivo de ajudar a expandir o olhar poético delas, tanto textual quanto visual. Missão cumprida: notou questões que os estudantes sinalizaram e que ele, como leitor antigo do autor, ainda não havia notado.

Com a experiência, percebeu que tinha um preconceito em relação às possibilidades da mediação à distância. Se antes pensava que a experiência online não poderia ser tão significativa quanto a leitura presencial, agora a percepção é bem diferente. “Se você fizer uma boa mediação, escolher livros de qualidade e se mostrar aberto para ouvir quem está do outro lado da tela, esse se mostra um momento muito potente. Tenho tido experiências muito incríveis, de literalmente chorar fazendo mediação com as crianças.”

Mesmo assim, sente que ainda há limitações na mediação de leitura online. “Sinto falta de sentir o calor do grupo que está me ouvindo, o ‘olho no olho’, ver as expressões de todo mundo. Sentir ali o espanto, a alegria, a diversão que acontece, fazer uma entonação de voz para olhar no fundo da pessoa e trazê-la para junto da história. Isso é insubstituível.”

Tanto no ambiente digital quanto no físico, para que essa conexão aconteça da melhor forma possível, é necessário que o momento seja compartilhado com a criança, na premissa da “leitura compartilhada”, como faz o professor que criou um espaço de leitura em sua própria casa. Essa premissa inclui dar a maior liberdade a quem está ouvindo e oportunizar que as pessoas falem e participem da roda, o que nem sempre acontece em espaços escolarizados.

Uma boa saída para superar as barreiras da distância é optar por obras que você goste muito, como foi o caso de Helder que ganhou, assim, mais segurança na leitura. “É a paixão que transparecemos para os outros, só é possível se a sentimos de verdade, e eu sinto muito isso nas obras que eu tenho. Tem livros que me são tão queridos que eu sinto uma necessidade de compartilhar com os outros.”

E é o que percebe também a professora e criadora de conteúdo no perfil @mergulho.literario, Malu Carvalho. Em sua experiência de mediação de leitura online com seus alunos de 2º ano do Ensino Fundamental, trocou a sala de aula por um celular e um computador. Mas ainda considera o livro como seu principal objeto de trabalho.

Foram muitas experimentações nesse período de mais de um ano de pandemia. Percebeu que os livros ilustrados, por exemplo, não eram favorecidos por esse formato, já que muitos deles têm a materialidade como parte importante da narrativa.

Decidiu, então, apostar nos contos tradicionais que já não lia há muito tempo. Aproveitou para recuperar histórias que as crianças não conheciam, mas que considerava fundamentais para a formação delas, como Branca de Neve e Rapunzel. É que, segundo ela, o contos de fadas apresentam “o lado sombrio de tudo e que habita em nós, mas de um jeito muito sutil e que não infantiliza, não subestima”.

São obras que não trazem de maneira tão contundente a questão da materialidade do objeto livro. Nesse caso, a mediação que ela prepara aposta também na contextualização da narrativa, amplificada pelos recursos tecnológicos. Ao ler O gigante egoísta, do autor irlandês Oscar Wilde, por exemplo, aproveitou as ferramentas que tinha à disposição para introduzir o escritor aos alunos em uma apresentação: incluiu ali a foto dele, contextualizou, explicou para as crianças o que é um clássico.

Assim, sua rotina de leitura literária com a turma, que antes incluía um projeto de leitura compartilhada (que se manteve durante as aulas à distância) e rodas de leitura diárias, teve que se adaptar à nova realidade. “O tempo é outro. As crianças não podem ficar em tela a mesma quantidade de tempo que ficavam presencialmente na escola”, afirma.

As leituras diárias, então, tiveram de ser opcionais e acontecer por meio de vídeos gravados. Alguns alunos aderiram no começo, e comentavam suas impressões e as provocações da mediação na plataforma de aula da turma. Aos poucos, outras crianças foram criando interesse e hoje a professora conta que todos assistem ao conteúdo, que pode ser conferido quantas vezes os estudantes quiserem.

Mas a educadora também reconhece as limitações do ambiente digital, como a presença em discussões que pedem um acolhimento, um “olho no olho” que ainda não é possível: “Temos que estar ali para abraçar, dar um colo. Já tive situações em que crianças choraram em uma leitura. Você se sente num lugar de impotência. Hoje, se eu estivesse na escola no presencial também não poderia agarrar e nem abraçar, mas ela ia ver que eu estou ali, na altura dela, que estou com ela.”

Apesar das limitações, finaliza com uma atitude positiva e uma provocação. “Não ouso dizer que o trabalho que eu faço [de mediação de leitura online] seja ideal. É o que eu consigo fazer dentro do que eu tenho. O que cada educador consegue fazer dentro do que tem?”

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