Não há rainha sem sua vizinha
Ao longo dos séculos, desde que uma mulher, Marie-Catherine d´Aulnoy, declarou que o que ela escrevia eram “contos de fadas”, talvez milhares de homens e mulheres tenham se ocupado em contar e escrever este tipo de narrativa. Mas aqueles que deixaram seus nomes como autores no mundo letrado são, em sua esmagadora maioria, homens.
A primeira vez que escutei o ditado “Não há rainha sem sua vizinha”, as palavras ficaram girando na minha cabeça e eu me vi na situação de repeti-las baixinho por vários minutos.
Que som gostoso produziam aquelas palavras na minha boca e o seu sentido me intrigava: para alguém ser rainha precisa ter outra pessoa no mesmo lugar, certo? Sim, mas ali havia mais, uma vez que estava implícita a impossibilidade de haver real vitória sem a presença de outras pessoas.
A rainha e sua vizinha me acompanharam na busca pela sobrevivência dos contos de fadas contados ou escritos por mulheres, que comecei em 2002 e que ainda não terminei. Encontrei rainhas suficientes para encher algumas centenas de páginas até agora e foram as vizinhas – representadas pelas parcerias que abraçaram alguns dos meus projetos – que ajudaram essas histórias antigas e esquecidas a voltarem triunfalmente para os dias de hoje em novos livros.
Rainhas e vizinhas que estão presentes nos contos do livro A bela e a fera e outros contos de fadas de Madame Leprince de Beaumont (Florear Livros, 2021, traduções de Cassia Leslie e minhas, com projeto gráfico de Agatha Kretli e ilustrações de Alexandre Camanho), fruindo a vida em sua plenitude e desafio.
Um repertório de irmãs (Glória Verdadeira e Falsa Glória, Belinha e Feiosa, Aurora e Amada), de fadas sábias (Cândida, Diamantina) e de mulheres comuns em busca de compreender a vida e se apropriar da experiência de seus vários aspectos.
Os reis, príncipes e homens comuns, como seria de se esperar, também aparecem nessas histórias, e nelas vivem as costumeiras aventuras: vencem provas difíceis, amam e andam muito pelo mundo, passando por revezes esperados pelo respeitável público leitor, que adivinha as linhas gerais e está sempre pronto a se surpreender pelo que nelas há de novo.
Porque esta é uma das graças dos contos de fadas: viver a alegria de ler para sentir novamente um sabor conhecido e delicioso.
Ítalo Calvino falou dos contos de fadas como um grande repertório de destinos humanos em que todos – ricos e pobres – passam por alegrias e tristezas, desejam e amam, buscam amor, filhos ou a água da vida, lutam contra dragões ou gigantes e são capazes de realizar as mais impossíveis provas.
Angela Carter garantiu que ter contato com eles era a maneira mais eficiente de encontrar algo realizado por aqueles que criaram o mundo antes de nós, um coletivo de seres humanos que, em sua maioria pobres e desvalidos, nos colocaram diante de personagens que podiam, por exemplo, comer até se sentir fartos e que viviam em palácios deslumbrantes, mas que não escapavam das mesmas circunstâncias comuns a todos, como desejar um filho e não conseguir tê-lo.
Ao longo dos séculos, desde que uma mulher, Marie-Catherine d´Aulnoy, declarou que o que ela escrevia eram “contos de fadas”, talvez milhares de homens e mulheres tenham se ocupado em contar e escrever este tipo de narrativa.
Mas aqueles que deixaram seus nomes como autores no mundo letrado são, em sua esmagadora maioria, homens. Um único conto de autoria feminina continuou brilhando e fazendo parte de quase todas as coletâneas: “A Bela e a Fera” na versão consagrada por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. Antes e depois dela, até pouco tempo, só tínhamos o silêncio povoado por uns poucos nomes, valiosíssimos sem dúvida, mas não únicos.
Meu trabalho e o das várias parcerias tem sido o de povoar estantes e silêncios, alargando repertórios. Isto é possível após visitar o passado pesquisando, redescobrindo livros, lendo, selecionando, para voltar ao presente com algumas obras que são redimensionadas e apresentadas novamente para que a comunidade de leitores possa ler e decidir se vale a pena abrir lugar em suas estantes e pensamentos para acolher o que poderia e deveria ter continuado a ser lido e contado ao longo das muitas gerações que nos antecederam.