Representatividade negra: outras centralidades para a literatura brasileira
Convidamos escritores, ilustradores e formadores de leitores a lançar seus olhares para a representatividade negra, tão urgente e necessária
“A história única cria estereótipos”, já apontava em 2009 a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em uma palestra que viralizou na internet. Na ocasião, falava de sua experiência de infância lendo livros escritos por autores britânicos, que não traziam a representatividade negra nem retratavam a sua realidade.
Tinha contato com aquelas obras e se imaginava em cenários com neve, bebendo cerveja de gengibre, costumes muito diferentes de sua realidade. Quando foi estudar nos Estados Unidos, percebeu a influência do que ela chama de “perigo da história única”: seus colegas estadunidenses perguntavam como ela falava tão bem a língua inglesa e se sabia usar um fogão.
Entendeu, então, que tudo isso vinha da falta de narrativas que trouxessem a sua realidade e a de seu país, múltiplas, variadas. Isso gerava os estereótipos. “E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos.”
No Brasil, essa desigualdade de narrativas também acontece, com as particularidades da nossa cultura. A formadora Bel Santos Mayer, que trabalha na promoção de bibliotecas comunitárias, vai além ao falar sobre essa representatividade no nosso contexto.
Para ela, valorizar, contar, ouvir histórias de matriz africana ou afro-brasileira é trazer “outras centralidades” para a literatura brasileira. Isso porque a cultura afro-brasileira não constitui a história do Brasil como tema periférico ou marginal: ela é inerente à cultura brasileira. “Não dá pra falar de Brasil sem falar de África”, lembra a formadora.
Daí a importância de trazer essa memória para além das narrativas de escravidão. Numa sociedade como a que estamos inseridos, em que aquilo que está nos livros é legitimado, trazer a representatividade negra em outras formas de manifestação cultural importa ainda mais.
“Quantas pessoas viviam essa representação religiosa [o candomblé] às escondidas. Ter o candomblé colocado nos livros, ter uma história, saber que a nossa vida não começou nas favelas, não começou com a escravidão, e poder falar de escravização, poder falar de diáspora […] essa é a importância.”
Daí um outro poder das narrativas, além da legitimação do que está nos livros, que é o de criar espelhos. “É a possibilidade de vermos naquilo que a gente ver”, afirma. “É poder falar, conversar sobre isso em família, é um jeito de romper com essa vergonha que nos foi imposta e ao mesmo tempo conseguir contribuir para que a gente olhe para o espelho se reconhecendo, reconhecendo essa diversidade que nos humaniza.”
Já para a escritora Kiusam de Oliveira, é necessário trazer a cultura afro-brasileira de forma “verdadeira, de dentro, honrosa e respeitosa”. Ela cita o exemplo de Histórias da Preta, livro escrito por Heloisa Pires Lima e ilustrado por Laurabeatriz, sobre uma menina que passeia pelo imaginário do continente africano, descobrindo histórias como a do tráfico negreiro, mas também os mitos africanos, os griôs e o candomblé.
A obra foi escrita em 1998, época em que ainda eram raras as obras que representavam o universo da cultura afro-brasileira, principalmente com autoria negra. A obra ainda conta “com imagens belíssimas e o envolvimento de uma menina conhecendo essa cultura, essa filosofia, essa forma de vida que é ser e estar no candomblé”, lembra Kiusam, que, por fim, repete: “Representatividade importa!”.
Para o artista plástico Josias Marinho, por sua vez, temos que ir além e pensar também na formação de leitores negros e não negros. Também temos que refletir sobre o que entendemos como literatura brasileira e descolonizar a forma como a consumimos. O encontro com essa literatura por meio dos livros é uma forma de lidar com a ficção e com a realidade. “Por vezes, são livros que nos apresentam a valorização do ser negro, da sociabilidade como potencializador do aprendizado e da existência”, afirma.
Para o poeta Edimilson de Almeida Pereira, há ainda a importância de medidas pedagógicas para “destecer uma memória social”, um imaginário compartilhado e construído coletivamente por “narrativas e ações de seres reais ou imaginários”.
Cada narrativa poética com esse refinamento pedagógico é a oportunidade de puxar outros fios dessa trama, criar “parâmetros sociais, políticos e culturais múltiplos, dinâmicos, que estão inseridos numa teia de relações complexas com outras sociedades”, é parte intrínseca da pluralidade cultural brasileira, é a compreensão e respeito desse universo e a direção para uma sociedade mais justa.
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